“Meu sonho era ter tido a chance de ficar na memória como o ministro que erradicou o analfabetismo no Brasil. Não pude. E ainda temos mais de 11 milhões de pessoas acima de 15 anos que não sabem ler nem escrever”. A reflexão é do ex-ministro da Educação, ex-senador, ex-governador do Distrito Federal, ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB) e um dos 15 especialistas convidados pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para traçar o futuro da educação no mundo: Cristovam Buarque.
Foto: Dênio Simões
Pai de políticas públicas e ações implementados no DF (de 1995 a 1998) que são grandes legados para Brasília e influenciaram a criação de programas de abrangência nacional — a exemplo do Bolsa Escola, que inspirou o Bolsa Família —, o recifense nascido em fevereiro de 1944 chegou à capital aos 35 anos de idade, com esposa Gladys e dois filhos pequenos (com 4 e 5 anos), em 15 de março de 1979. “No mesmo dia da posse de Figueiredo, o último presidente militar do Brasil”, recorda-se.
Graduado em engenharia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Cristovam desembarcou em Brasília depois de trabalhar por seis anos no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), quando ocupou postos relevantes no Equador, Honduras e Estados Unidos, onde morou a maior parte deste período: quatro anos, na capital Washington. Antes, por conta de perseguições da ditadura, ele partiu para um “autoexílio” na França. “Época em que eu mergulhei nos estudos”, conta o ex-governador, que conquistou doutorado em Economia pela Universidade de Panthéon-Sorbonne (Paris), em 1973.
“Eu queria voltar para o Brasil e tinha possibilidade de trabalhar na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), na Universidade de Campinas ou na UnB. Escolhi vir para Brasília, a nova capital do país, onde eu poderia colaborar tanto com a academia como também com o Parlamento, embora eu não pensasse em ser político”, afirma o ex-senador.
Ao chegar no Distrito Federal, Cristovam e a família foram recebidos na casa do ex-colega de Engenharia na UFPE e à época já professor da UnB, Ricardo Lima. “Ficamos acampados na casa dele, por uns três meses”, diverte-se o ex-ministro. Depois, mudaram-se para a 107 Norte. Em 1980, Cristovam Buarque comprou um apartamento na 215 Norte, onde ele e Gladys moram até hoje.
“Meu prédio foi um dos primeiros daquela quadra, que nem asfalto tinha. Morávamos no sexto andar e o edifício ainda estava sem elevador. Mas, naquela época, subir e descer tantas escadas não era sacrifício algum para um corredor de meia-maratona, com trinta e poucos anos de idade”, graceja o ex-governador, ao se lembrar dos encontros de professores nos apartamentos da Colina da UnB.
Embora tenha se envolvido com o movimento estudantil durante a graduação na UFPE e sido ligado a Leonel Brizola, fundador do PDT, Cristovam Buarque só ingressou oficialmente na política em 1994. Naquele ano, ele aceitou o convite do PT para disputar a eleição ao Governo do Distrito Federal contra Joaquim Roriz, que em 1999 retornou ao GDF, frustrando os planos de reeleição de Cristovam.
No Executivo local, o ex-reitor da UnB colecionou êxitos em programas e iniciativas que marcaram a gestão dele à frente da administração de Brasília: além do Bolsa Escola, a Campanha Paz no Trânsito de respeito à faixa de pedestres, a Poupança Escola (estímulo para os estudantes concluírem o ensino médio), o BRB Trabalho (microcrédito para pequenos empresários), o Projeto Saber (cursos profissionalizantes para trabalhadores como cabeleireiros e padeiros), a Mala do Livro (cerca de 500 mil livros oferecidos à comunidade), o Projeto Orla (revitalização ambiental e empresarial do Lago Paranoá); a Cesta Pré-Escola (cesta básica concedida a mães de crianças com até 4 anos de idade, mediante a realização de um curso por mês) e as Temporadas Populares (ações de arte e cultura promovidas com a participação de artistas de todo o país, a um custo de R$ 1 para a população).
Um dos idealizadores do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), Cristovam também implementou o Telematrícula na rede de ensino de Brasília. Ele orgulha-se pela expansão da educação pública nos quatros anos em que esteve à frente do GDF.
“Construímos uma média de duas salas de aula por dia, totalizando aproximadamente 3 mil salas instaladas nos quatro anos de governo”, contabiliza Buarque, que em 2006 candidatou-se à Presidência da República com a proposta de mudar a nação e promover a inclusão social a partir “de uma revolução pela educação”.
No Legislativo, Cristovam Buarque continuou pautando a atuação dele na defesa intransigente da educação. Eleito senador em 2002, com 674.086 votos (30% dos válidos), e reeleito em 2010, com 833.480 votos (37,7% dos votos válidos), o brasiliense de coração faz questão de pontuar que nunca usou apartamento funcional nem pagou “um único almoço com dinheiro do Senado”.
No ministério, teve como uma das principais metas a implementação do projeto de Federalização da Educação Básica — em que o tema deixaria de ser uma questão municipal para tornar-se uma prioridade da União. Na avaliação de Cristovam, a única utopia que deveria ter sido mantida no Brasil é “filho de pobre estudar na mesma escola que filho de rico”.
Ao refletir sobre a eleição de Bolsonaro, o ex-ministro aponta três do que ele classifica como os principais erros cometidos pelos brasileiros na atualidade: “tolerância à corrupção”, “culto a personalidade de dirigentes” e “cooptação das universidades, que perderam o senso crítico”.
Autor de aproximadamente 40 livros (três deles, infanto-juvenis), Cristovam Buarque foi consultor de diversos organismos no âmbito das Nações Unidas. Presidiu o Conselho da Universidade para a Paz da ONU e foi membro do Conselho Consultivo do Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD, entre outros cargos internacionais.
Em 2014, Cristovam se aposentou pela Universidade de Brasília. “Hoje, entendo que, aos 76 anos de idade, tenho o direito de aproveitar mais a minha vida”, diz o professor emérito da UnB, que continua escrevendo e fazendo palestras dentro e fora do país.
(Diário do Poder, 12/3/20)